No primeiro final de semana de
Março embarquei numas com meus companheiros de banda e vida do Ameaça Cigana. O
desejo era antigo, os convites igualmente, mas a vergonha na cara e a
disposição propriamente dita só deram margem nessa época e lá fomos nós, cruzar
o médio do mapa brasileiro rumo ao Rio Grande do Sul pra quatro shows em
míseros três dias.
Como não tenho absolutamente nada
pra fazer e, repito, o desejo era antigo, estacionei minhas patas em solo porto
alegrense um dia antes dos demais, extremamente bem recepcionado pelo chapa
quente Daniel Villaverde e desde já abraçado pelas iguarias culinárias da
localidade. A cultura do Buffet me ganhou logo de cara, fiquei gordinho a mais
e fomos olhar discos, beber cerveja local, visitar a belíssima Casa de Cultura
Mário Quintana e turismices mais. Apaixonei-me de cara pela cidade, e olha que
era só o primeiro dia.
Sexta feira já fomos logo cedo
surpreendidos pelo signor baixista Eduardo e tocamos o barco pra rua, num role
turístico completo com nosso guia local. Sorvete de sabores exóticos, milk
shake de abóbora com coco, suco no jarro de liquidificador às margens do Parque
Farroupilha, almoço simples mas maravilhoso no antológico bar Ocidente,
pernadas e mais pernadas atrás de mais comida e dali a pouco já era hora de buscar os outros dois homens bons no
aeroporto. Já estávamos bebinhos de cerveja artesanal do Lagum, agradabilíssimo
local que, não satisfeito em ser foda por si só, ainda tocava um Ghost de
ambientação. Qualidade de vida!
Bom, pegamos os xovens, e rumamos
para o Black Stone, local do primeiro show. É engraçado como a gente precisa
cruzar o país pra se dar conta que, de fato, o som do Ornitorrincos não é
clichê nem romantismo barato. O local era um estúdio pra ensaio (amigos de casa, imaginem um Old Studio
cheirosinho e mais espaçoso, com estúdio pra tattoo logo ao lado e poucos
espaços a menos pra convivência). O som tava impecável, um tanto razoável
de gente apareceu e a Vírus Korrosivus começou a festa, sapecando um crust
corrido meio Disrupt (rolou um cover, inclusive) com nuances de hardcore Japa e
Britcore. Meu destaque aqui vai pro baterista, um ogro destruidor de mundos.
Pouca economia, do jeito que eu gosto. A essa altura o povo já se arrancava no
bom espaço destinado pro pit e nessas saí pra pegar uma gelada e refrescar o
pêlo pra logo mais.
Hora da ação. Tocamos nosso set
completinho (uma música a mais, repetida, pedida por um louco que não me lembro
agora) e acabou-se a ânsia doida pelo primeiro show. Achei que o nosso cover de
Kleiton e Kledir seria mal aceito, mas, ao contrário, o povo levantou as mãos e
entrou no clima. Hospitalidade nota mil! É legal sair de casa, ir lá pra longe
e se dar conta que reclamar do corriqueiro é idiotice, porque em todo canto a
realidade do subterrâneo é a mesma. Impressões mais que positivas, boas vendas
na banquinha improvisada pelo Pícaro no pós-show e hora de descanso, mas,
claro, antecipado por um maravilhoso Xis com fritas no Cavanhas.
Sábado acordamos relativamente
cedo, eu e Dudu na casa do Villaverde, Pícaro e Ramalho na casa do Homero,
camarada que sempre hospeda transeuntes apadrinhados por Villa em suas
empreitadas mil. Embromações à parte, o ponto de encontro foi o Buffet
vegetariano numa praça central que esqueci o nome. Comida saudável pra remediar
os excessos da noite passada e fomos eu, Ramalho e Dudu estacionar o bucho
cheio na praça à espera de Júlia, nossa carona até Caxias. Villa e Pícaro iriam
de trem.
Esperamos, voltei no vegetariano
pra dar uma cagada, olhamos uns discos de um tiozinho na praça, começamos a
beber, esperamos mais um pouco e logo chega Júlia e seu namorado, amores de
pessoa, extremamente prestativos e pacientes com as piadas idiotas da dupla
dinâmica Lucca-Eduardo. A viagem foi prazerosa, o frio das serras começou a
bater de leve e combinou bem com o Sebadoh no toca cd do carro. Um ponto baixo
que foi a perca do celular do Dudu quando paramos num posto, mas fodase, o rock
ta aí é pra fuder a vida da pessoa mesmo.
Chegamos em Caxias, e, amizades,
que cidade! Já fiquei no entusiasmo logo de cara porque o show seria num local
chamado GALPÃO GAUCHO, repleto de pôsteres de locais com suas vestes de
tradição, Teixeirinha com chimarrão na boca, anúncios de bailes próximos e aquela
presepada gauchesca séria E tosca que a gente adora. Tiramos umas fotos por
ali, conversamos um pouco com o Gregory, responsável pela organização do show,
e fomos passear atrás da tal fonte que jorra vinho, tradição em época de Festa
da Uva.
Nesse trajeto o encanto com a
cidade só aumentava. Tava aquele friozinho bom pra xamego, figuraças nas ruas,
Polar gelada nas mãos e chegamos à tal fonte, que realmente, era roxa e tinha
xafariz do líquido, dando um ar bonitinho pra coisa. Pícaro, imundo que é,
meteu o dedo naquela água suja com cheiro de Tang e passou na boca pra ver que
gosto tinha. Deve ter pego umas doenças, mas, ta certo, turismo é isso aí. Na
volta degustamos mais um delicioso Xis, acompanhado de bolinhas de queijo e
polenta frita e voltamos às pressas pro local do show.
É difícil dizer se tinha muita
gente porque aquele local cheio devia caber umas 500 cabeças fácil, mas a
agitação de quem tava ali beirando o palco dava um clima bom pra coisa. Destaco,
entre as três bandas de abertura, a de Gregory, chamada Anomalia Social. O
menino era um hiperativo meio Darby Crash com malária. Se deu banho de vinho, agitava
insanamente, gritava, esperneava e puxava o bonde da banda, que não me agradou
tanto por um lado, mas encantou pelas estripulias do jovem talento. Toda cidade
tem o GG Allin que lhe cabe, né? Falta gente assim no mundo.
Nossa hora de tocar e lá fomos
nós. Subimos no palco gigantesco, som ÓTIMO e muito bem regulado pelos locais
e, na minha opinião, ali aconteceu a melhor execução desde que entrei pro
grupo. Tocamos soltos, guiados por um paredão de PA digno de show do Kiss e
assim a coisa fluiu, perfeitamente. Eduardo disse que tomou uma mordida no
braço durante a festa (possivelmente pelo doido do Gregory, mas não tenho
certeza), e os poucos presentes à essa altura agitavam legal, dando um clima
mais uma vez hospitaleiro e positivo pro show. Pícaro fez boas vendas na
banquinha (o interesse do povo de lá me surpreendia, inclusive), e era hora de
desarrumar os resquícios de rock pro bailão gaúcho começar no ressinto. Devo,
contudo, ressaltar o carisma da mãe e da tia do Gregory, que serviram um arroz
com feijão DELICIOSO após o show. Parecia um sonho. Toma, mãe! Toma, pai! To
viajando, comendo do melhor, rindo pra vida... É o rock! Como tudo tem dois
lados, a empreitada tava boa demais pra ser verdade. Mal sabia a infelicidade e
os delírios de logo mais...
Comemos bastante o melhor feijão
do mundo, ficamos fortinhos, e Gregory junto com seu amigo louco suicida (que
eu não sei o nome; que toca guitarra na banda dele; que ainda será mencionado
nessa história) nos deixaram na rodoviária, e lá, adivinhem? Não tinha mais
ônibus pra POA. Como proceder? Pensamos em descolar um hostel podre e ficar por
ali, idéia inviável pela alta temporada da cidade e possíveis altos preços
mencionados pelos conterrâneos. Discute aqui, embroma ali, até que Gregory e
seu amigo sugerem: “Vamo pra colônia!”. Segundo eles era uma casa bem
afortunada localizada numa cidade vizinha
– Flores da Cunha, se não me engano -, bastante espaçosa, praticamente
cedida por não sei quem aos guris e que comportaria nossos sonos numa boa.
Vamos lá, né? Desenrolaram mais um carro, todos à postos, eu bem cansado e
doido por uma caminha, e lá fomos nós: Lucca numa pampa com Gregory, eu, Villa,
Dudu e Pics com o louco.
Olha, não sou muito de ter medo
da morte. Mas dessa vez... A estrada era extremamente sinuosa, cheia de curvas
fechadas com altíssimos abismos nas bordas (como o próprio motorista
carinhosamente nos disse, “se sair da pista, boa sorte”), e o velocímetro
apontava 120 sem dó. Ultrapassagens perigosas, cu na mão, e olha que o Dudu se
ofereceu pra tomar o posto, mas o rapaz insistia: “Tá tudo bem. Eu conheço essa
estrada”. Imagine uma meia hora disso. Nós quatro estáticos, um olhando pra
cara do outro sem saber o que fazer, e o menino se divertindo no volante. Chega
logo, Colônia!! Chegou! Tô vivo, porra! Dei um abraço no Dudu, respiramos
aliviados e entramos na imensa casa, isolada, cheia de móveis antigos, muito
bonita. Jogamos uma sinuca, conversamos fiado, o louco ainda tocou um violão e
fomos dormir. Ufa!
Domingão acordamos cedo, ainda
estáticos pela aventura da noite passada, e conduzidos por mais meia hora de
aventura do doido do volante (ele fez na volta exatamente as mesmas estripulias
da ida; na noite passada achava que era porque ele tava bêbo, mas na manhã do
domingo me dei conta que ele é meio doido mesmo), chegamos na rodoviária, e
depois de um lanchinho, embarcamos de volta pra POA. O dia seria extenso. Dois
shows, Campo Bom e Canoas. “Se não morri ontem eu não morro mais”, pensava eu.
Vamos lá.
Quase chegando a POA o ônibus
estragou, e isso foi motivo pra celebrar porra nenhuma através de mais ampolas
de Polar num posto às margens. Uma hora de enrolação, chega um novo ônibus, e
finalmente aterrissamos na capital, com horário apertado pros compromissos de
mais tarde, mas com algum tempinho à disposição pra dar uma cagada e tomar
banho. Dois pra lá, dois pra cá, e logo estávamos avante ao trem rumo Campo
Bom.
No domingo, desfecho do magnífico
passeio, foi tudo muito rápido. Chegamos a Campo Bom de tardezinha, mal deu
tempo de fazer uma visita à praça e Villaverde já liga na urgência dizendo que
o Ornitorrindos ia começar a tocar. Oba! Além de tocar e passear (não
necessariamente nessa ordem), um dos agravantes desse passeio, pra mim, foi
poder vê-los ao vivo. Vale lembrar que o local era um centro cultural auto-gestionado
por atuantes locais, ótimo para shows de pequeno porte como esse. Toda a renda,
inclusive, foi destinada à manutenção da casa, que passa por sérios problemas
financeiros. Justo.
Munidos de mais latões de Polar,
assistimos os Ornitorrincos. Genial! Toda a expectativa foi alcançada com
sobras e finalmente minha larica pela banda ao vivo foi sanada. Clássicos
absolutos como “Secuestre el encargado de correos mas acerca de usted”, “Agora
sim eu me importo” e “O homem louva o louva deus” estavam no set e fiquei
cantando junto, lembrando de quantas bad trips essas músicas já me tiraram.
Alegria pro coração do peão e lá fomos nós tocar de novo.
Mais uma vez situando os de
Goiânia, o espaço pro show era tipo um Capim Pub quando era lá em cima, só que
mais espaçoso pra frente e pros lados e com cerveja sempre gelada (hehe).
Tocamos para um público tímido, até razoável em quantidade, mas estático no
balanceio. Villa disse que achou esse nosso melhor show. Sai satisfeito, feliz por ter contribuído de
alguma forma pra reestruturação do local e reflexivo por me dar conta, mais uma
vez, que de norte a sul do país a dificuldade é sempre a mesma. Deu um orgulho
pessoal de fazer parte dessa conexão subterrânea, confesso, e logo fomos
presenteados com pães franceses e uma deliciosa panelada de soja. Comida!
Vitória!!
Depois de uma zoada e cervejas a
mais no local, agradecemos, nos despedimos e
zarpamos com Lucas, batera do Ornitorrincos e que tocaria com o Entre
Rejas em Canoas. Mais um coitado que agüentou as piadas infames, mas aceitava
numa boa. Uns 40 minutos de chão, cansaço já visível nas faces podres e
chegamos em Canoas, que é pra Porto Alegre mais ou menos o que Trindade é pra
Goiânia. O Wender, camarada de alguma data, era o responsável pelo show. Tudo em
casa.
Chegamos e quem tocava era o
Motor City Madness. Que banda!! O lance soava como um Motosierra melhorado
(sério!), extremamente bem executado e com um punch de som digno de quem sabe
regular pro que toca. Fudido! Altão! A típica banda que teria fãs a rodo em
Goiânia.
Ah, o local. Outra vez, um
estúdio. Mais uma prova de que a escassez de locais ta fazendo os responsáveis
recorrerem a isso. Acho ótimo. O som é sempre bom, o espaço (pelo menos nesse e
no caso de Porto Alegre) era suficiente pra suportar os médios/baixos públicos
do nosso meio, e o melhor, os donos costumam ser justos nas negociações. Nesse
caso de Canoas, mais uma vez, o som tava redondinho, batera tinindo (para a
minha alegria) e aquela velha sensação de “se só tem tu, vai tu mesmo. E não é
ruim não!”.
Depois do arregaço do Motor City
veio o Entre Rejas, banda clássica da região. Tocaram um set relativamente
curto e de músicas curtas, soando com um Discarga pampa. Rapidasso! Seein Red
nessa porra! Gosto de banda assim. Vocal falado, músicas na velocidade de luz
sob eficiência de um Power trio entrosado e tocando sem falhas. Mais cervejas,
mais conversa, um intervalinho de nada e chegava a nossa vez.
Mais uma vez, as regalias de um
estúdio. Som perfeito e pessoal em cima, dando aquele clima quente que a gente
gosta. Toquei ouvindo tudo, extremamente bem situado. O set passou até rápido,
achei. Tava me divertindo muito, acho que pelo brilho cervejeiro resultante do
acúmulo de dois shows na seqüência. Acabou o show, os cabras foram embora pra
embarcar na segunda cedo, e fiquei na casa do Wender, que me hospedaria até o
dia seguinte.
Fiquei em Porto Alegre a semana inteira, mas resumo o causo
apenas ao que comportou toda a banda. Foi isso: três dias de novas amizades,
euforia, alegria, medo, satisfação, cansaço e, sobretudo, encantamento pelo
novo. Você investe uma grana do bolso, passa uns dias dormindo mal,
desregulando refeição e comendo tranqueira atrás de tranqueira, poderia ter
motivo pra voltar puto pra casa, mas não, volta rindo a toa e querendo mais
disso. Viver as coisas nessa sinceridade, á base de amizade, cumplicidade,
trocando experiência e se abrindo pra novas condições é o que sustenta o
desajuste de gente como eu e como você que tá lendo. O mais encantador é se dar
conta que, seja aqui no Centro-Oeste, seja no Sul, o underground vai
resistindo, se mantendo como dá, sustentando-se pela paixão de quem faz a coisa
por amor, não por dinheiro. É só uma questão de distâncias, definitivamente.
Texto magnífico confeccionado pelo raparigo de estirpe larga conhecido pela graça de Júlio Baron (percussionista dos conjuntos musicais Ameça Cigana, Tirei Zero, WxCxMx e Ímpeto), o multiprocessador do submundo clandestino goianiense.
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